Qual a causa do golpe militar de 1964?

 

Em história, é complicado apontar causas, porque isso elimina a complexidade das explicações. Existem razões de ordem econômica e política que, entrelaçadas, explicam o movimento militar de 1964. As razões econômicas resultam de um quadro deteriorado em que a inflação chegava a quase 100% anuais, havia descontrole das contas do governo e também no setor externo da economia – e não houve êxito nas tentativas de encontrar saídas para essa situação, no final do período democrático. Do ponto de vista político, ocorreu o empate de diferentes forças que, na disputa do poder, acabaram se inibindo. Muita gente fala de paralisia do Congresso, pois ele praticamente deixou de funcionar. Ao lado disso, setores militares e civis estavam convencidos de que era preciso interromper o regime populista de João Goulart. Do outro lado, havia o comportamento do governo Jango, que, em vez de ajudar a manter o regime democrático, alimentava os setores de direita. Todos esses fatores explicam o movimento militar de 1964, assim como uma série de ações impensadas, como o comício da Central, no Rio de Janeiro, em que se anunciaram reformas sem que houvesse uma capacidade efetiva de realizá-las, e a ocupação do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro. Em condições desse tipo, sempre ganha quem tem mais poder armado: como as Forças Armadas tendiam para o golpe, o golpe acabou saindo.

Houve participação dos Estados Unidos?
Dizer que os americanos estavam por trás do movimento militar de 1964 é simplificar demais. Trata-se de uma meia verdade. Eles estavam prontos para auxiliar os golpistas caso houvesse necessidade, até com unidades navais. Mas não foi preciso, pois o governo Goulart simplesmente ruiu, com pouca ou nenhuma resistência. Não houve intervenção americana, na realidade. Mas é evidente que os americanos estavam preocupados com o governo Jango e com a possibilidade da criação de uma imensa Cuba no Brasil - e, na retaguarda, apoiaram o golpe.

O que foram os Atos Institucionais?
Essa foi uma forma de legislar típica do regime antidemocrático, em oposição à atuação do Congresso. Na perspectiva dos militares, não havia condições de se implementar uma reestruturação do país pela via do Congresso, e então procuraram fazê-lo por meio do Poder Executivo (que eles chamavam de o poder constituinte da revolução). Os Atos Institucionais estabeleceram uma série de medidas: cassaram pessoas e mandatos de deputados, aposentaram funcionários públicos, extinguiram partidos políticos. Deixavam de lado o Congresso e emanavam da autoridade do general-presidente Castelo Branco. Eles guardavam alguma semelhança com medidas do passado, como os decretos-lei que Getúlio baixava durante o Estado Novo.

O que pretendia o governo do general Castelo Branco?
Os militares não eram um bloco homogêneo; eles se uniram pela perspectiva de derrubar o governo Goulart, mas depois disso continuaram divididos. Existia o chamado grupo da Sorbonne, mais intelectualizado, que pretendia fazer uma espécie de purificação democrática – eliminar a corrupção, os populistas, os comunistas e, feita a limpeza, reinstalar um regime democrático, baseado na ordem, com mais estabilidade. Do lado oposto estava a chamada linha dura, que acreditava na ameaça comunista e defendia total firmeza contra qualquer adversário do regime, sustentando que, para mudar o Brasil, seria preciso manter um longo período de ditadura. Castelo Branco se situava entre os homens da Sorbonne, entre os democratas conservadores e, nesse sentido, governou com a intenção de chegar o mais rápido possível à democracia conservadora, expurgando os inimigos do país. Mas, sob as pressões da linha dura, acabou cedendo.

Quem perdeu poder com o regime de 1964?
Em primeiro lugar, todas as forças do populismo trabalhista, com João Goulart à frente, tiveram de sair de cena: Brizola, da ala radical, políticos civis de prestígio, Juscelino, Jânio, a classe política perdeu com o movimento de 64. A liderança sindical trabalhista, as lideranças camponesas, as Ligas, os sindicatos rurais, os dirigentes dos sindicatos, todos foram desalojados, perseguidos e presos.

E quem ganhou com o golpe?
É difícil dizer, pois o regime militar durou muito tempo e, ao incentivar por exemplo a criação da grande empresa agrícola – que hoje chamamos agronegócio – e a constituição de grandes grupos empresariais, beneficiou esses setores. De modo geral houve estímulo ao consumo e à poupança e o reequilíbrio da economia, e isso, em última análise, favoreceu a classe média.

Qual a situação dos partidos políticos em 64?
A organização partidária mudou muito. Nos primeiros tempos, os partidos que vinham do período democrático, UDN, PSD, PTB e outros menores, continuaram a existir. Mas nas eleições estaduais de outubro de 1965, apesar de toda a coação no processo eleitoral, a oposição chegou a ganhar em alguns estados. Cresceu então a pressão da linha dura sobre Castelo Branco, sob o argumento de que, se ela fosse derrotada nas eleições, perderia força. O Ato Institucional número 2 extinguiu os partidos políticos e criou uma legislação para dificultar a formação de outros novos. Como resultado, estabeleceu-se o bipartidarismo, quer dizer, passaram a existir apenas dois partidos: a Arena, do governo, e o MDB, da oposição consentida.

Não havia oposição ao governo?
O MDB deu trabalho, não era tão consentido assim. Ulisses Guimarães e outras figuras expressivas se tornaram foco de oposição legal e, com o tempo, a estrutura do bipartidarismo se voltou, como uma espécie de bumerangue, contra o regime militar. Isso porque todas as insatisfações existentes, que cresciam cada vez mais, se concentraram no MDB. Era o partido que abrigava desde a extrema esquerda até os liberais de centro, e passou a representar uma força muito grande. Em cada eleição havia uma espécie de plebiscito pró ou contra o governo. O bipartidarismo acabou ajudando a oposição e, quase vinte anos depois, teve papel importante na abertura política.

Qual a influência da Escola Superior de Guerra?
O chamado grupo da Sorbonne, que percorreu todo o regime militar, era influenciado pela Escola Superior de Guerra, que hoje tem importância secundária, mas foi central na formulação de uma ideologia específica, não só militar como também civil, nos anos 50 e 60. A escola foi formada no Rio de Janeiro, com influência e presença de oficiais americanos e franceses. O modelo era o War College, dos Estados Unidos. Era a época da guerra fria, em que se via, de forma radicalizada, o mundo dividido em dois pólos – a União Soviética promovia o avanço da guerra revolucionária e os Estados Unidos assumiam a defesa democrática do mundo. O grupo formado pela Escola Superior de Guerra, castelista, era muito pró-Estados Unidos no plano da política externa mas, ao mesmo tempo, era de certa forma mais democrático, com uma perspectiva de não prolongar a ditadura militar. Os partidários da linha dura combinavam mais nacionalismo com repressão, com violência.

Quais eram as dificuldades do governo Castelo Branco?
A situação econômica estava deteriorada: contas externas desequilibradas, enorme déficit, inflação. Roberto Campos, que fora muito ligado a Juscelino, e Otávio Gouveia de Bulhões ocuparam o Ministério do Planejamento e o Ministério da Fazenda e tomaram uma série de medidas no plano econômico para reequilibrar o país e promover uma retomada do crescimento: segurar os salários e os gastos públicos, tornando estes últimos mais responsáveis. Ao mesmo tempo, tomaram-se medidas como a da correção monetária: gradativamente, os contratos e os salários foram indexados, quer dizer, ficaram sujeitos a uma revisão de acordo com a inflação. Era uma forma de evitar que os devedores do governo pagassem com uma moeda desvalorizada. De certo modo, esse governo introduziu uma realidade na economia e favoreceu uma poupança nacional, um dos objetivos dos militares. O Banco Central foi criado nessa época.

Foi alcançada a estabilidade da economia?
O regime autoritário facilitou a execução dessas medidas e, em grande parte, elas acabaram dando certo. Por exemplo, a implementação da política de contenção salarial foi facilitada, pois na época os sindicatos estavam amordaçados. Mas é forçoso reconhecer que, em suas grandes linhas, era uma política bem concebida; eles conseguiram de fato promover uma estabilidade da economia que, embora temporária, foi importante na evolução do regime militar.

O que houve de novo na Constituição de 1967?
Ela legalizou uma série de medidas implementadas pelos Atos Institucionais, como as eleições indiretas em todos os níveis. Em seu espírito estava a doutrina da segurança nacional, formulada durante a guerra fria. No mundo dividido entre duas forças, era preciso criar instrumentos deliberadamente autoritários, violentos, para que a segurança fosse preservada e o país não fosse contaminado pelo vírus da subversão.

Quem foi o sucessor de Castelo Branco?
O general Castelo Branco teve o mandato prorrogado contra sua vontade, mas seu grupo não conseguiu fazer o sucessor, que veio da linha dura: o general Artur da Costa e Silva. Sob muitos aspectos, ele era o oposto do grupo da Sorbonne: pouco intelectualizado, diziam que gostava mais de fazer palavras cruzadas do que de ler. Não era necessariamente “duro”: chegou a fazer pronunciamentos em favor da democratização, relacionou-se com civis moderados de oposição, mas acabou sendo uma ponte para a linha dura e o governo Médici.

O que significou o ano de 1968?
Este foi um ano muito especial no mundo inteiro. Houve um grande movimento popular na França, pela mudança não só das instituições, como também dos costumes políticos. Um dos lemas falava da imaginação no poder. No mesmo ano, e em outro contexto, aconteceram nos Estados Unidos os grandes festivais hippies de música, como Woodstock. Se não mudou o mundo, 1968 pelo menos sacudiu-o, em todos os planos, da política e também da cultura, vista como uma expressão mais ampla. Isso se refletiu no Brasil, em vários níveis, em uma explosão na cultura que pode ser resumida na frase de uma música de Caetano Veloso: “É proibido proibir”.

E no plano político?
Do ponto de vista político, o ano de 68 foi caracterizado por uma mobilização que se explica em grande medida por aquilo que já vinha ocorrendo: passado o primeiro momento do movimento militar de 64, as oposições foram se reerguendo. Isso redundou numa série de movimentos de classe média, como a famosa passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, em defesa da democratização, após a morte do estudante Edson Luiz. Houve também a retomada do movimento operário, com diferentes direções, em geral exemplificadas em dois movimentos: um em Contagem, Minas Gerais, era reivindicatório e não propriamente agressivo; outro em Osasco, São Paulo, influenciado por formas de luta que lembravam a luta armada.

O que representou o Ato Institucional número 5?
Uma verdadeira revolução dentro da revolução, ou, se quiserem, uma contra-revolução dentro da contra-revolução. Em dezembro de 1968, a edição do AI-5 restabeleceu uma série de medidas excepcionais suspensas pela Constituição de 67. Voltaram as cassações e o fechamento político e todo esse fechamento não tinha prazo, quer dizer, o AI-5 veio para ficar. Há quem diga que o AI-5 foi uma espécie de resposta ao início da luta armada, mas em 68 as ações armadas eram poucas. Ao que parece, o fator desencadeante pode ter sido a mobilização geral da sociedade brasileira em 1968 e a convicção ideológica de que qualquer abertura redundava em desordem. Então, era preciso endurecer, fechar, recorrer a poderes excepcionais para combater a subversão. Isso é o que explica o AI-5.

O que estava por trás da luta armada?
A idéia de que seria impossível derrotar a ditadura por métodos pacíficos. A partir de 1968 começaram a surgir algumas ações, mas o auge foi depois do AI-5, nos anos de 69 e 70. O AI-5 fortaleceu a idéia de que os militares não se dispunham a abandonar o poder, e ficou claro que haveria cada vez menos brechas para a oposição. Essa idéia foi influenciada na época pelo êxito da Revolução Cubana, um movimento espantoso: um pequeno grupo guerrilheiro que se estabeleceu em Sierra Maestra, foi se estendendo e acabou, nas barbas dos Estados Unidos, por derrubar o regime de Batista.

Quais foram as principais organizações de luta armada?
Uma delas era a Aliança de Libertação Nacional (ALN), cuja figura principal foi Carlos Marighella, morto pela repressão. A ALN resultou de uma cisão do Partido Comunista; foi formada em fins da década de 60, por grupos do PC, pois este rejeitava a luta armada. Houve também o MR-8, a Vanguarda Popular Revolucionária (a VPR do capitão Lamarca, que rompeu com o Exército) - essas foram as principais organizações da luta armada.

De que modo o governo militar reagiu?
A luta armada fez sua aparição realmente espetacular a partir do seqüestro do embaixador americano Elbrick, no Rio de Janeiro (narrado no livro de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?). Setores oposicionistas tiveram a impressão de que os grupos de luta armada iriam desestabilizar a ditadura, mas na verdade o regime militar desencadeou uma repressão violenta, feroz, atingindo até setores da sociedade que não integravam esses grupos.

A tortura foi um instrumento político da ditadura?
Somente em 1968 a tortura se tornou sistemática em todo o país, como instrumento político. Antes disso, ela era utilizada em algumas situações, com diferenças geográficas. Em São Paulo, por exemplo, não havia tortura em 1964, mas no Nordeste, sim. Gregório Bezerra, líder comunista conhecido em Pernambuco, foi amarrado e arrastado por cavalos pelas ruas do Recife; coisas horríveis desse tipo! Em 68 se instalou a repressão sistemática. Foram criadas organizações – como a Operação Bandeirantes, em São Paulo – que usavam todo tipo de violência para quebrar a oposição, principalmente a ligada à luta armada. Começaram a surgir em maior número pessoas violentadas, sacrificadas, mortas. O regime militar apresentou sua face mais obscura.

O que o regime ganhou, torturando pessoas?
Do ponto de vista dos militares, a tortura representou um instrumento poderoso para desbaratar os grupos de luta armada, que até nem teriam muita possibilidade de avançar depois de um primeiro grande impacto, mas foram mais rapidamente quebrados com a tortura, com as pessoas sendo forçadas a se delatar umas às outras. Isso acabou tornando a luta armada um rápido e trágico episódio histórico, um equívoco de enormes proporções, por mais que a gente respeite as pessoas que se sacrificaram nessa luta.

Em qual governo militar a repressão foi mais violenta?
Quando Costa e Silva ficou doente, foi afastado do poder. Marinha, Aeronáutica e Exército elegeram, a portas fechadas, um típico representante da linha dura, o general Emílio Garrastazu Médici, do Rio Grande do Sul. O nome de Médici está associado à face mais negra da repressão, nada na história brasileira se compara a esse período, nesse sentido. Ele se beneficiou de um momento econômico extremamente favorável, quando o país cresceu a taxas extraordinárias e houve uma espécie de melhoria nas condições de vida da população. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que estabelecia uma repressão muito violenta, atacando os setores politizados e articulados da sociedade, para o resto da população o regime de Médici era associado à prosperidade, aos tempos do “milagre econômico”.

 

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