Reforma de Base o Sonho que não se Realizou

 

As Reformas de Base


Mensagem ao Congresso Nacional


1 - Natureza Estrutural dos Problemas Brasileiros


Os contrastes mais agudos que a sociedade brasileira apresenta, na fase atual do seu desenvolvimento, são de natureza estrutural, e, em virtude deles, a imensa maioria da nossa população é sacrificada, quer no relativo à justa e equânime distribuição da renda nacional, quer no referente à sua participação na vida política do País e nas oportunidades de trabalho e de educação que o desenvolvimento a todos deve e pode oferecer. Por isso mesmo que estruturais estas contradições só poderão ser resolvidas mediante reformas capazes de substituir as estruturas existentes por outras compatíveis com o progresso realizado e com a conquista dos novos níveis de desenvolvimento e bem-estar.

A solução de tais problemas, que se avolumam e se agravam, exige de todos os brasileiros lúcidos persistência e confiança e, da parte dos poderes públicos, novos padrões de ação em harmonia com rápida ascensão das aspirações populares.

Consciente das distorções verificadas ao longo do nosso processo de transformação social e da necessidade imperiosa de reformas estruturais e institucionais assumi a responsabilidade de comandar a luta pela renovação pacífica da sociedade brasileira, como encargo primeiro e responsabilidade mais alta da investidura com que me honrou a vontade dos meus concidadãos.

Optei pelo combate aos privilégios e pela iniciativa das reformas de base, por força das quais se realizará a substituição de estruturas e instituições inadequadas à tranqüila continuidade do nosso progresso e à instauração de uma convivência democrática plena e efetiva.


2 - Opção por um Brasil Novo


Como cidadão ou como Presidente da República, já mais concorrerei, por ação ou por omissão, para legitimar discriminações e injustiças, por meio da conservação de estruturas envelhecidas que desqualificam o trabalho e o convertem em instrumento de opressão e desigualdade. Entendo que ao Chefe do Governo de um país em desenvolvimento cumpre estimular a criação de meios e oportunidades para que o trabalho seja, precisamente, a arma pacífica da eliminação de privilégios e desníveis. É imperioso fazer dele a dimensão nova de uma sociedade que reformula o seu projeto de existência, para promover a libertação de classes sociais inferiorizadas pela situação que ocupam no processo geral da produção.

Não é possível admitir-se continuem em vigor normas, padrões e valores que, em nosso meio, principalmente nas áreas rurais, perpetuam formas de relações de trabalho inspiradas nos resíduos de uma concepção aristocrática e feudal da vida e do mundo ou alicerçadas nas falsas premissas e nas hierarquizações injustas de um liberalismo econômico adverso aos encargos e às exigências do Estado Moderno.


3 - O Imperialismo


O grande problema do nosso tempo não reside apenas na desigualdade entre países ricos e pobres, que tão flagrantemente caracteriza o cenário mundial, mas o fato de que o fosso entre uns e outros tende a aprofundar-se progressivamente, por força de maior velocidade de capitalização das nações industrializadas.

Assim, se o desnível entre os dois mundos – industrializados e em vias de desenvolvimento – já é de si insuportável, tende a assumir proporções explosivas se não forem retificadas as condições atuais da economia internacional. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, basicamente exportadores de produtos primários, não mais podem assistir impassíveis ao continuado aviltamento dos preços de suas exportações, no processo residual de um sistema colonialista já ultrapassado e repelido.


4 - Política Externa Independente


A política externa independente do Brasil, na interpretação e na projeção do exclusivo interesse nacional não poderia, conseqüentemente, deixar de prestigiar por todos os meios essa cruzada histórica em prol da eliminação das desigualdades que violentam o próprio conceito de soberania nacional.

A nação incapaz de repelir as tentativas de tutela que contra ela se armem, e destituída de energia bastante para impedir a alienação do produto do seu trabalho e das riquezas naturais, comprometem irremediavelmente a sua própria segurança e submete-se a um processo de dominação, em que é sacrificada a liberdade de opção, que deve ser um dos seus apanágios.

Eis porque o Governo imprime às suas relações com o exterior orientação que se caracteriza pela obediência a princípios cuja sustentação considera imperativa: não-intervenção no processo político das demais nações, autodeterminação dos povos, igualdade jurídica dos Estados, solução pacífica das controvérsias, respeito aos direitos humanos e fidelidade aos compromissos internacionais.


5 - A Espoliação do Capital Internacional


Obtivemos o reescalonamento da dívida externa do País pouco tempo após regulamentar a execução da lei de remessa de lucros, medida destinada a por cobro à sangria ilimitada e indiscriminada dos ganhos aqui havidos pelo capital alienígena e ao extorsivo sistema de pagamento de royalties. Ninguém ignora tampouco o vulto das lesões que vimos sofrendo em razão das manipulações contábeis, que proporcionam rendimentos e lucros ilícitos, e das fraudes que são praticadas no super e nos sub-faturamentos, especialmente quando envolvem negociações entre empresas estrangeiras, aqui localizadas, e suas matrizes no exterior.

Todo esse processo de espoliação será, de agora em diante, combatido, com a aplicação das medidas previstas na regulamentação que baixei sobre a remessa de lucros.

6 - Defesa das Riquezas Minerais

No mês de Dezembro do ano findo, coube-ma a honra de, ainda uma vez, amparar e defender, com energia, os interesses do povo brasileiros ligados à exploração das riquezas do nosso subsolo.Assim é que, por decreto baixado na Pasta das Minas e Energia, determinei a cassação de todas as concessões de pesquisa e lavra de minérios, que infrinjam as expressas disposições do Código de Minas e da Constituição.

Determinei, igualmente, a cassação de todas as autorizações outorgadas a sociedades mercantis para funcionarem como empresas de mineração nos casos em que tais empresas não se ajustem às exigências da legislação, especialmente no que concerne à nacionalidade brasileira dos seus dirigentes, sócios ou acionistas. Tais medidas de resguardo da lei e dos interesses nacionais serão integralmente executadas, ainda quando contra ela se arregimentem e mobilizem instrumentos de pressão e veículos de publicidade para divulgar inverdades e falsas informações, que confundam a opinião pública.


7 - Decretos Redentores


A deliberação de progredir, que caracteriza os brasileiros de nossos dias, traduz-se, no Poder Executivo, pelo esforço permanente em esgotar todas as suas potencialidades de ação, visando a atender aos anseios nacionais por novas e mais amplas perspectivas de desenvolvimento. Assim, é que o Governo, no dia 13 de Março em curso, acrescentou aos atos já firmados da regulamentação de remessa de lucros, da decretação do monopólio de importação de óleo e derivados e da defesa do patrimônio mineral do País, dois novos decretos de importância capital pata o povo brasileiro.
O primeiro deles declara de interesse social, para fins de desapropriação, uma faixa de dez quilômetros ao longo das rodovias e ferrovias, bem como das áreas beneficiadas por obras federais, como os açudes. Por este ato, áreas inexploradas e sob o domínio de latifundiários, que não as cultivam nem permitem que outros a cultivem, serão desapropriadas e divididas em lotes para entrega aos camponeses que as queiram cultivar. Esta é a primeira ampla porta que se abre para uma reforma agrária que se realizará pacificamente, regida pelos preceitos democráticos e com fidelidade às tradições cristãs do nosso povo.

Convênios de assistência técnica, assinados entre as Forças Armadas e a Superintendência de Política Agrária, complementam este ato e esgotam, também, no âmbito das relações do homem com a terra, todas as possibilidades de ação normativa do Poder Executivo.

O segundo ato, firmado na mesma data, salda um dos compromissos indeclináveis do Governo com a execução e o fortalecimento da política de monopólio estatal do petróleo, estabelecida já na lei nº 2.004 e tantas vezes defendida pelo Presidente Vargas.

Por intermédio desse ato, foram desapropriadas em favor da Petrobrás, todas as ações de propriedade de particulares em empresas de refino de petróleo. Completam-se, assim, o embasamento nacional e estatal da Petrobrás que ao monopólio de importação, já decretado, vê acrescentar-se os monopólios totais do refino, assegurando-se, deste modo, à grande empresa – objeto do orgulho de todos os nacionalistas brasileiros – plenas condições de consolidação e expansão como o maior parque industrial da América Latina.


8 - Justiça Fiscal


Outro projeto do Poder Executivo, para o qual aguardo, com justa esperança, um rápido pronunciamento dos Senhores Congressistas é o que procura combater decididamente, a sonegação fiscal, já transformada num dos maiores escândalos deste País e que defrauda o Tesouro Nacional de quantias que atingem níveis clamorosos.


9 - A Libertação do Homem do Campo: Reforma Agrária


No quadro das reformas básicas que o Brasil de hoje nos impõe, a de maior alcance social e econômico, porque corrige um descompasso histórico, a mais justa e humana, porque irá beneficiar direta e indiretamente milhões de camponeses brasileiros é, sem dúvida, a Reforma Agrária.
O Brasil dos nossos dias não mais admite que se prolongue o doloroso processo de espoliação que, durante mais de quatro séculos, reduziu e condenou milhões de brasileiros a condições sub-humanas de existência.

Esses milhões de patrícios nossos, que até um passado recente, por força das próprias condições de atraso a que estavam submetidos, guardavam resignação diante da ignorância e da penúria em que viviam, despertam agora, debatem seus próprios problemas, organizam-se e revelam-se, reclamando nova posição no quadro nacional. Exigem, como compensação pelo que sempre deram e continuam dando à Nação – como principal contingente que são da força nacional de trabalho – que se lhes assegurem mais justas participações na riqueza nacional, melhores condições de vida e perspectivas mais concretas de se beneficiarem com as conquistas sociais alcançadas pelos trabalhadores urbanos.
Para atender velhas e justas aspirações populares, ora em maré montante que ameaça conduzir o País a uma convulsão talvez sangrenta, sinto-me no grande dever de propor ao exame do Congresso Nacional, um conjunto de providências a meu ver indispensáveis e já agora inadiáveis, para serem, afinal, satisfeitas as reivindicações de 40 milhões de brasileiros.

Assim é que submeto à apreciação de Vossas Excelências, a que cabe privativamente a reformulação da Constituição da República, a sugestão dos seguintes princípios básicos para a consecução da Reforma Agrária:

- A ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade.

- Poderão ser desapropriadas, mediante pagamento em títulos públicos de valor reajustável, na forma que a lei determinar:

a) todas as propriedades não exploradas;
b) as parcelas não exploradas de propriedade, parcialmente aproveitadas, quando excederem a metade da área total.

- Nos casos de desapropriações, por interesse social, será sempre ressalvado ao proprietário o direito de escolher e demarcar, como de sua propriedade de uso lícito, área contígua com dimensão igual à explorada.

- O Poder Executivo, mediante programas de colonização promoverá a desapropriação de áreas agrícolas nas condições das alíneas “a” e “b” por meio do depósito em dinheiro de 50% da média dos valores tomados por base para lançamento do imposto territorial nos últimos 5 anos, sem prejuízo de ulterior indenização em títulos mediante processo judicial.


10 - Produção de Alimentos


A produção de gêneros alimentícios para o mercado interno tem prioridade sobre qualquer outro emprego da terra e é obrigatória em todas as propriedades agrícolas ou pastoris, diretamente pelo proprietário ou mediante arrendamento.


I) O Poder Executivo fixará a proporção mínima da área de cultivo agrícola de produtos alimentícios para cada tipo de exploração agropecuária nas diferentes regiões do País.

II) Todas as áreas destinadas a cultivo sofrerão rodízio e a quarta cultura será obrigatoriamente de gêneros alimentícios para o mercado interno, de acordo com as normas fixadas pelo Poder Executivo.

- O preço da terra para arrendamento, aforamento, parceria ou qualquer outra forma de locação agrícola, jamais excederá o dízimo do valor das colheitas comerciais obtidas.

- São prorrogados os contratos expressos ou tácitos de arrendamento e parceria agropecuários, cujos prazos e condições serão regidos por lei especial.

Para a concretização da Reforma Agrária é também imprescindível reformar o §16 do art. 141 e o art. 147 da Constituição Federal. Só por esse meio será possível empreender a reorganização democrática da economia brasileira, de modo que efetue a justa distribuição da propriedade, segundo o interesse de todos e com o duplo propósito de alargar as bases da Nação, estendendo-se os benefícios da propriedade a todos os seus filhos, e multiplicar o número de proprietários, com o que será melhor defendido o instituto da propriedade.


11 - Reforma Constitucional


Para alcançar esses atos objetivos será recomendável, a meu ver, incorporarem-se à nossa Carta Magna, os seguintes preceitos:

- Ficam supressas, no texto do §16 do art. 141 a palavra “prévia” e a expressão “em dinheiro”.

- o ART. 147 DA Constituição Federal passa a ter a seguinte redação:

- O uso da propriedade é condicionado ao bem-estar social.
- A União promoverá a justa distribuição da propriedade e o seu melhor aproveitamento, mediante desapropriação por interesse social, segundos os critérios que a lei estabelecer.


12 - O Voto de Todos os Brasileiros


Outra discriminação inaceitável atinge milhões de cidadãos que, embora revestidos de todas as responsabilidades civis, obrigados, portanto, a conhecer e a cumprir a lei e integrados na força de trabalho com seu contingente mais numeroso, são impedidos de votar, por serem analfabetos. Considerando-se que mais da metade da população brasileira é constituída de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça, que leva à conclusão irrecusável de que o atual quadro de eleitores já não representa a Nação, urgindo sua ampliação para salvaguarda da democracia brasileira.

A verdade, já agora irrecusável, é que o nosso processo democrático só se tornará realmente nacional e livre quando estiver integrado por todos os brasileiros e aberto a todas as correntes de pensamento político, sem quaisquer discriminações ideológicas, filosóficas ou religiosas, para que o povo tenha a liberdade de examinar os caminhos que se abrem à sua frente, no comando do seu próprio destino.

Para esse passo essencial e inadiável, é, a meu ver imprescindível que se altere a Constituição da República, a fim de nela incorporar, caso nisto aquiesça o Congresso Nacional, no exercício de sua atribuição privativa, como princípios básicos de nossa vida política, as seguintes normas:

- São alistáveis os brasileiros que saibam exprimir-se na língua nacional e não hajam incorrido nos casos do art. 135 da Constituição.

- São elegíveis os alistáveis.


13 - O Plebiscito das Reformas


Momentos há do desenvolvimento histórico de um povo em que sua própria sobrevivência e a autonomia no comando do seu destino se podem por em risco, caso se deixe abrir uma brecha entre as aspirações populares e as instituições responsáveis pela ordenação da vida nacional. Para fazer face a esse risco, permito-me sugerir a Vossas Excelências, Senhores Congressistas, se julgado necessário para a aprovação das Reformas de Base indispensáveis ao nosso desenvolvimento, a utilização de um instrumento da vida democrática, jurídico e eficaz, que torne possível salvaguardá-la mediante consulta à fonte mesma de todo poder legítimo que é a vontade popular.

Assim, peço a Vossas Excelências que também estudem a conveniência de realizar-se essa consulta popular para a apuração da vontade nacional, mediante o voto de todos os brasileiros maiores de 18 anos para o pronunciamento majoritário a respeito das Reformas de Base.


14 - O Desafio desta Geração


Estou certo de que os nobres Parlamentares do Brasil, deste ano de 1964, guardam fidelidade às honrosas tradições dos nossos antecipados, que, em conjunturas semelhantes da vida nacional, como a Independência, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República e a Promulgação da Legislação Trabalhista, tiveram a sabedoria e a grandeza de renovar instituições básicas da Nação, que se haviam tornado obsoletas, assim salvaguardando o desenvolvimento pacífico do povo brasileiro.

O desafio histórico repete-se outra vez. Agora, nossa geração é que está convocada para cumprir a alta missão de ampliar as estruturas sócio-econômicas e renovar as instituições jurídicas, a fim de preservar a paz da família brasileira e abrir à Nação novas perspectivas de progresso e de integração de milhões de patrícios nossos numa vida mais compatível com a dignidade humana.

 

Brasília, 15 de Março de 1964.

JOÃO GOULART
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